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13 de dezembro de 2012
O COMUM
MESA-REDONDA
Os dispositivos da saúde pública
vistos sob diversos ângulos

Maria da Penha Vasconcellos, Helena Leal David
e Nicolas Lechopier durante a mesa-redonda, que
teve também a participação, via teleconferência,
de Denise Gastaldo e Emilia Sanabria

A saúde pública
em tempos de crise

Ao tratar dos efeitos da atual crise econômica internacional, disparada em 2008, sobre a saúde pública, Maria da Penha Vasconcellos chamou atenção para o paradoxo entre o aumento das vulnerabilidades sociais e a precarização da saúde pública. Considerando o campo de ação da saúde pública como um espelho das tensões que perpassam a sociedade, ela concentrou-se em duas questões principais.

A primeira diz respeito ao conjunto de ações tomadas pelas sociedades e pelos governos para conter a crise. Segundo a professora, a população, de um lado, procura se proteger da crise limitando as despesas com saúde; o Estado, de outro, cria medidas para corte de gastos, que vão do fechamento de banheiros públicos, passando pela redução da coleta de lixo, até planos de privatização do sistema de saúde, como é o caso da Espanha.

A segunda questão refere-se à hegemonia do discurso da saúde que prescreve comportamentos para assegurar uma vida saudável e longeva. Para ela, a superexposição a esse discurso resulta em intervenções na intimidade, como o monitoramento constante do corpo através de novas tecnologias médicas, e em outros fenômenos, como a proliferação das farmácias domésticas, "de forma que hoje é frustrante sair da consulta sem indicação de um medicamento para consumir".

Um método centrado
nas subjetividades

O método da narrativa de mapas corporais — aplicado em 22 migrantes latino-americanos que trabalham ilegalmente no Canadá — consiste na elaboração, por cada trabalhador, de desenhos do corpo humano em tamanho real, com auxílio de recursos artísticos, para expressar ideias, experiências, trajetórias de vida, significados e sentimentos. As histórias mapeadas são compostas de três elementos: o mapa, uma legenda descrevendo o mapa e o testemunho do trabalhador.

De acordo com Denise Gastaldo, o método parte da ideia de que "é possível explorar o mundo para além das perguntas, através da criação de um artefato que estimula uma reflexão prolongada sobre a própria jornada de vida". Entre as vantagens, ela apontou a possibilidade de encarar os trabalhadores em sua complexidade como seres humanos, considerando suas subjetividades e identidades, e de ir além da mera descrição das condições de saúde.

A pesquisadora afirmou que o método apresenta limitações, já que exige longas sessões com cada trabalhador, implica certa habilidade artística e impõe dificuldades de armazenamento, mas enfatizou que também tem grande potencial, sobretudo porque oferece resultados diferentes dos obtidos através do método tradicional das entrevistas. Para ela, "esse tipo de iniciativa é minoritário e pouco aceito, principalmente porque há uma tentativa de politizar o debate sobre a saúde".

Críticas à educação alimentar

Tratando especificamente da elevação das taxas de obesidade na França, Emilia Sanabria traçou um panorama crítico das ações de educação alimentar francesas direcionadas para a mudança de comportamento. De acordo com ela, a questão se constitui como um problema político no país, na medida em que envolve a capacidade de o sistema de saúde se manter frente aos custos ocasionados por doenças crônicas associadas ao aumento de peso.

A pesquisadora concentrou-se em quatro críticas feitas às medidas educativas: 1) elas aprofundariam desigualdades sociais, uma vez que seriam mais eficientes entre pessoas com maior nível educacional; 2) contribuiriam para a estigmatização das pessoas obesas ao reforçar a ideia de que o controle de peso depende da força de vontade; 3) no caso da informação nutricional dos produtos, seriam ineficazes na mudança de comportamento, uma vez que os processos de decisão seriam complexos; e 4) seriam influenciadas pela indústria agroalimentícia francesa, responsável por altos investimentos na promoção de alimentos.

Para Sanabria, essas críticas colocam em cena o papel da comunicação e do marketing como ferramentas para incitar mudanças de comportamento vinculadas à saúde pública, dentro de uma lógica liberal, movida por fatores de mercado e pela força do consumo.

Uma educação para
democratizar a saúde pública

Segundo Helena Leal David, a educação popular voltada para a saúde pública envolve "uma perspectiva acompanhada de fazeres e práticas, uma forma de olhar a saúde por meio da coletivização dos debates", que visa a promover e valorizar a participação ativa dos indivíduos.

A professora falou sobre como a educação popular, fortemente influenciada pelas relações entre movimentos sociais, lutas populares e sociedade civil na construção do projeto democrático, vem contribuindo para a construção da Política Nacional de Educação Popular em Saúde, marcada pela articulação da sociedade com as instâncias de formulação de políticas públicas como forma de pautar mudanças.

De acordo com ela, a política tem por objetivo dar visibilidade às práticas populares no campo da saúde, que vão de rezadeiras e parteiras até o reike (tratamento de origem japonesa baseado no uso das mãos), colocando-as na agenda de discussões integrativas para a área. "Trata-se de uma discussão difícil, mas que precisa ser feita se a gente quiser ter um SUS democrático", disse.

O diálogo interdisciplinar sobre as realidades do Brasil, da França e do Canadá deu o tom da mesa-redonda Dispositivos de Saúde Pública — Quais as Abordagens Críticas?, realizada no dia 5 de novembro no IEA.

Coordenado por Nicolas Lechopier, pesquisador visitante do Grupo de Pesquisa de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e Tecnologia do IEA, o evento contou com a participação de quatro pesquisadoras que desenvolvem estudos sobre dispositivos de saúde pública nos três países a partir de áreas disciplinares diferentes.

Segundo Lechopier, que é professor da Université Claude Bernard de Lyon 1 e da École Normale Superieure de Lyon, ambas na França, esses dispositivos referem-se a ações e práticas difundidas por profissionais da saúde e pela mídia e incorporadas pelas escolas e famílias, que têm por objetivo "educar, introduzir tecnologias, construir novas subjetividades ou reorganizar a sociedade".

O professor ressaltou que o debate foi orientado por dois pressupostos. O primeiro é o de que os enfoques monodisciplinares são insuficientes para a construção de uma ética crítica da saúde pública e, por isso, a filosofia e outras disciplinas das ciências sociais e humanas devem dialogar mais.

O segundo é o de que fazer uma crítica dos dispositivos de saúde pública a partir de realidades tão diferentes quanto a brasileira, canadense e francesa requer levar em consideração os contextos e especificidades de cada país.

Diversidade de abordagens
As quatro debatedoras da mesa-redonda apresentaram subsídios diversificados ao debate. Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, fez uma reflexão sobre os rumos da saúde pública contemporânea em contextos de instabilidade e incertezas sobre o futuro, com foco na situação dos países europeus frente à crise econômica internacional.

Por videoconferência, Denise Gastaldo, professora da Lawrence S. Bloomberg Faculty of Nurse, da University of Toronto, no Canadá, discutiu as contribuições da pesquisa qualitivativa — mais especificamente do método da narrativa de mapas corporais — aos estudos sobre a saúde pública.

Também por videoconferência, Emilia Sanabria, do Institut Français de l'Education, da École Normale Superieure de Lyon, na França, falou sobre como os dispositivos de  educação alimentar operam na responsabilização dos indivíduos pela própria saúde. Sua apresentação concentrou-se em críticas às ações educativas francesas para conter o aumento das taxas de obesidade no país.

Já Helena Leal David, professora da Faculdade de Enfermagem da UERJ, tratou do potencial da educação popular voltada para a saúde pública. Ela destacou a importância de o Estado democratizar o processo de formulação de políticas públicas para a saúde abrindo espaço para a participação dos movimentos populares.

Convergência de ideias
Apesar de diversas, as exposições dialogaram entre si e convergiram para duas questões principais, que estão interligadas e foram intensamente exploradas no debate: a necessidade de novas perspectivas epistemológicas para pensar a saúde pública e as tensões entre o individual e o coletivo.

Para Maria da Penha Vasconcellos, essas tensões derivam de imperativos econômicos neoliberais, que impõem a exclusão da sociedade do debate sobre a saúde pública. "A agenda da saúde pública é feita mais nos gabinetes dos ministros que nos bancos das universidades", disse, reforçando que as ciências sociais precisam estar atentas ao processo de transformação da saúde em mercadoria e dos cidadãos em consumidores. Segundo a pesquisadora, diante desse cenário, as ciências sociais devem "se posicionar de forma crítica perante a desconstrução de direitos adquiridos para garantir a saúde e proteção das pessoas".

Denise Gastaldo criticou o que considera uma coletivização excessiva da saúde pública e o consequente ofuscamento do individual e do subjetivo.  De acordo com ela, "a saúde pública é o império do coletivo", principalmente porque é fundamentada numa perspectiva epidemiológica de caráter quantitativo e positivista, que prioriza o monitoramento da população e o uso de estatísticas e, ao fazer isso, cria estereótipos e estigmatiza certos grupos.

Emilia Sanabria, por outro lado, destacou que as políticas públicas francesas para controle da obesidade tendem para a individualização do problema, uma vez que se baseiam na ideia de que o controle de peso é uma questão de força de vontade e de opção de cada um, desconsiderando uma série de outros fatores, que vão de estruturais a neurofisiológicos.

Frisando que a educação popular fundamenta-se na força tanto da coletividade quanto dos indivíduos, Helena Leal afirmou que a melhor forma de suavizar essas tensões é explorar a "fortaleza das pessoas", enfocando não o que as faz ficar mais doentes, mas o que as faz ficar menos doentes e mais resistentes.

 

 

Foto: Mauro Bellesa/IEA-USP

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