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As várias faces do crime organizado no Brasil Marco Antônio Coelho* Por que "Tropa de Elite" tornou-se o filme mais discutido e arrasta aos cinemas um número assombroso de pessoas? Por que o processo de democratização no Brasil, iniciado em 1978, veio acompanhado de elevadas taxas de homicídio entre os jovens e por que nosso país, construído pelas ideais de cordialidade, parece dominado por impulsos sempre mais agressivos? Esses paradoxos são analisados pela antropóloga Alba Zaluar num texto do dossiê "Crime Organizado", que "Estudos Avançados" publica na edição 61 (setembro-dezembro/2007). A decisão de lançar esse dossiê foi tomada tendo em vista a relevância do tema, pois diariamente são divulgadas graves ocorrências praticadas por grupos de criminosos. Por isso amplia-se na opinião pública o sentimento de insegurança das pessoas, inclusive de crianças, mulheres e idosos. Ao mesmo tempo há uma generalizada convicção de que a Justiça não está agindo como deveria para punir os responsáveis por essas atividades. Também coloca-se em questão a conduta dos órgãos de repressão, mesmo porque muitos policiais têm sido afastados devido ao seu envolvimento com criminosos, ou pelo abuso de autoridade. Embora porta-vozes governamentais propalem que as autoridades estão adotando medidas para combater esses crimes, a população julga que até agora não foram tomadas as medidas necessárias para eliminar, ou, pelo menos, para reduzir esse tormento. A evolução desse clima comprova que estamos diante de um dado novo, o crime organizado, com características especiais, em decorrência de determinados fatores, entre os quais: a obtenção de elevados recursos com o tráfico de drogas e armas, a atuação por cima das fronteiras nacionais, a utilização de tecnologia moderna (como os celulares) etc. Em face dessa realidade, "Estudos Avançados" fez um levantamento de informações e conseguiu estudos de especialistas na matéria e de autoridades públicas, com o objetivo de colaborar para uma reformulação da política nacional de segurança. Abre o dossiê um trabalho elaborado pelos professores Sérgio Adorno e Fernando Salla, ambos do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Eles analisaram a criminalidade organizada nas prisões e apresentaram uma informação detalhada dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), de maio a agosto de 2006, ações que provocaram dezenas de mortes, paralisaram cidades e imobilizaram a polícia. O surgimento dessa criminalidade é examinado sobre vários aspectos, entre os quais o cenário internacional e nacional, os antecedentes históricos e o enraizamento dela na sociedade. Nesse dossiê apresentamos dados sobre as mortes por violência como um indicador geral dos crimes na sociedade brasileira, levantados pelo "Mapa da Violência", estudo de autoria de Julio Waiselfisz. Por ele comprova-se que as taxas de homicídio no Brasil, no ano de 2004, são trinta ou quarenta vezes superiores às taxas de países como Inglaterra, França, Alemanha, Áustria e Egito. O referido "Mapa" indicou que as vítimas de homicídios são preferencialmente moços e que na faixa dos 15 aos 24 anos essas taxas são as mais elevadas, pois aparecem em torno de 65 homicídios por cem mil jovens. Ao lado disso, no mesmo ano, essas taxas foram mais altas em Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rondônia, Distrito Federal e Alagoas. Um renomado cientista social, que foi Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, fez um retrospecto de sucessivas tentativas de implantar uma política nacional de segurança em âmbito nacional, por meio da elaboração de planos, buscando-se compreender seus principais movimentos: avanços e recuos, pressões e reações. Para contextualizar esse exame ele analisou as dificuldades implicadas na definição de critérios, métodos e mecanismos de avaliação e monitoramento de políticas de segurança pública e da performance policial. Com o propósito de ouvir o órgão da administração federal responsável pela repressão às atividades criminosas, "Estudos Avançados" solicitou entrevista ao então diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda. Este encarregou o delegado Getúlio Bezerra dos Santos, que à época era o diretor de Combate ao Crime Organizado, de atender à nossa solicitação. A entrevista foi dada no dia 21 de agosto, por telefone. O delegado reconheceu que a situação no interior dos presídios é como "uma bomba anunciada que pode explodir a qualquer momento". Declarou que os encarcerados vivem numa situação "quase patológica" e que se organizaram para continuar praticando crimes. Porém, na opinião desse delegado, esse tipo de crime repercute e incomoda, "mas não é ele que debilita o Estado", pois "o que nos enfraquece são fatores como a corrupção e a sonegação de impostos, porque o Estado fica sem recursos para resolver todos os problemas". Nesse dossiê de "Estudos Avançados" também incluímos uma análise sobre uma função que deveria ser a prioridade dos órgãos de segurança: o trabalho sistemático de levantamento de informações sobre os grupos criminosos. Atividade que, para lhe atribuir maior importância e responsabilidade, passou a ser denominada "Inteligência Criminal". Nesse texto, preparado por um especialista na questão — Guaracy Minguardi —, afirma-se que se trata de uma atuação essencial para conter o crime organizado. Todavia, adiantou que a experiência brasileira até agora não se mostrou frutífera nessa área. Procurando examinar a realidade das condições de vida dos encarcerados, entrevistamos o padre Valdir João Silveira, vice-coordenador da Pastoral Carcerária, entidade que desde 1997 atua de forma a melhorar as condições em que vivem cerca de 420 mil homens e mulheres encarcerados. Informando que apenas 10% dos presos pertencem a facções criminosas, padre Silveira pensa que uma das causas do surgimento dessas organizações decorreu em grande medida dos erros cometidos pelo Estado. Isto porque não assegura os direitos dos encarcerados e não tem uma efetiva política voltada para a reabilitação daqueles que praticaram crimes. No dossiê também divulgamos um resumo de um depoimento de Marcola, condenado a 44 anos de prisão e acusado de ser um dos líderes do PCC. Interrogado, numa reunião privada de uma CPI da Câmara dos Deputados, afirmou ser inútil aumentar a pressão e as normas punitivas contra os encarcerados e transmitiu suas reflexões a propósito de sua própria situação. O juiz federal Flávio Oliveira Lucas fez um resumo dos principais problemas jurídicos no combate ao crime organizado. Acentuou que a realidade brasileira é propícia ao crescimento de grupos criminosos, assinalando também que entre os obstáculos que impedem uma ação mais rigorosa do Poder Público destacam-se os sigilos — bancário, telefônico e fiscal — estabelecidos pela legislação. Igualmente, apontou que outra barreira à atuação das autoridades reside na limitação territorial de sua soberania, enquanto para o crime organizado as fronteiras não existem. Num artigo de autoria dos professores Jacqueline Muniz e Domício Proença Júnior, houve uma apreciação sobre como atua a polícia no Brasil, seu "poder", suas virtudes e vícios no exercício de sua função. O ensaio desenvolve a trajetória profissional de um hipotético policial, compartilhando uma visão de base etnográfica sobre as fronteiras entre convivência, conveniência e conivência diante das atividades ilícitas. Examinando o tráfico de drogas a partir de seu relacionamento nas tramas urbanas, os pesquisadores Vera da Silva Telles e Daniel Hirata situam, numa perspectiva analítica, as práticas criminosas nas gestões das ilegalidades da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, o advogado Francisco de Paiva Forte discute num artigo o fracasso da atual política de repressão e proibição das chamadas "drogas ilícitas". Num texto do professor Michel Misse é apresentada a evolução das principais redes de mercados ilegais no Rio de Janeiro, para indicar que a compra e venda de "mercadorias políticas" constitui uma das principais chaves para a compreensão da violência no Rio de Janeiro. * jornalista, editor executivo da revista "Estudos Avançados". |